Três cadáveres e algumas canções
O corpo exibia-se, imóvel e ostensivo, com a serenidade de todos os cadáveres resultantes de um suicídio. Uma garrafa de uísque, tombada sobre o lençol e vazada até um terço do conteúdo, e um frasco de comprimidos, completamente exaurido, faziam a guarda fúnebre e indiciavam a causa da morte.
O inspector Vargas avançou pelo apartamento. Era uma casa sem alma, parcamente mobilada, sem retratos de familiares, demasiado arrumada, com todas as peças no devido sítio. A sala de estar era rasgada por uma janela de dimensões generosas, ocupando a quase totalidade de uma das paredes, num dos topos. No extremo oposto impunha-se uma tela com uma fotografia. Vargas conhecia o local fixado pela objetiva. Era um aspecto da cidade de Angra do Heroísmo, nos Açores. O azul e branco da fachada Igreja da Misericórdia contrastava com um céu cinzento, tão carregado que dava a impressão de nuvens abobadadas, prontas a descarregar um aguaceiro. A escolha daquela imagem poderia significar alguma devoção, origem geográfica do morto ou apenas tendências depressivas, pois só um espírito enegrecido poderia encontrar beleza numa imagem tão mórbida. As outras duas paredes da sala estavam cobertas com estantes, albergando centenas ou milhares de livros, discos e filmes. Um televisor no centro de um dos complexos de estantes emprestava alguma normalidade suburbana, na ausência de cristaleiras, jarrões chineses ou pinturas de pechisbeque. Na pequena mesa entre os sofás e a pantalha permanecia uma carta.
- Evidentemente, estamos perante um suicídio melancólico-financeiro. A sentença de Vargas apanhou o coadjuvante Gomes de surpresa.
- Ainda sou do tempo em que o chefe frisava a necessidade da dúvida criativa. Mas vejo que agora prefere o desfecho criativo: que é isso de suicídio melancólico-financeiro?
- Estás muito engraçado hoje. Lê a carta que estava aqui em cima da mesa e já ficas a saber.
Não era um normal bilhete legado por um suicida. Tratava-se de uma missiva dirigida à secção das cartas do leitor de um jornal diário, advertindo para a preferência do autor pela publicação na edição de domingo. Guilherme apresentava-se como jovem contribuinte, desfiava as contingências de uma vida suspensa na precariedade e nas contas para pagar. Afirmava-se adepto das artes, especialmente da poesia, e despedia-se do mundo, responsabilizando a organização social e económica pelo desfecho precoce, aos vinte e três anos.
Enquanto Gomes lia o bilhete, Vargas foi abandonando o apartamento, sem paciência para a interpelação da vizinha da frente, uma velhota enfiada num roupão, acompanhada por um gato negro, que lhe roçava as pernas em movimentos concêntricos.
- Era muito educado. Cumprimentava-me sempre. Mas também era muito solitário, Nunca o vi acompanhado.
Uma informação coerente com o modo como as autoridades foram alertadas. O telefonema não surgiu de qualquer familiar, amigo ou namorada, partira da agência de comunicação onde Guilherme exercia como redactor. Ana, uma colega de trabalho, alegara que Guilherme era um profissional exemplar, nunca faltara ao serviço e, naquele dia, em teletrabalho, não respondera a qualquer chamada e deixara pendurado um cliente importante, com o qual deveria ter-se reunido por videoconferência. Relutantemente, a polícia deslocou-se ao apartamento. Tocou a campainha e não obteve resposta. O agente telefonou e, apesar de ouvir o toque do aparelho de destino da chamada, ninguém atendeu. A moradora na porta em frente, já com o roupão vestido, assegurou que não ouvira o vizinho sair naquele dia nem escutara qualquer movimento no interior, apenas o telefone a tocar, várias vezes. O resto já sabemos: forçada a entrada, o corpo esperava pelos visitantes, em cima da cama, completamente vestido, embora descalço. Foi o segundo cadáver do dia do inspector Vargas.
A jornada começara a meio de mais uma noite de sono encrespado. Vargas revoluteava-se na cama, ao ritmo dos sonhos incomodativos, sem grande significado por si mesmos, uma moinha que, invariavelmente, redunda numa espertina precoce. Imaginava a parede por cima da cama rachada e abaulada, na continuidade de uma racha no reboco que, de facto, existia por cima da mesinha-de-cabeceira. Entretanto, antecipando o desmoronamento da parede, ouve-se um ruído insistente, a sirene do quartel dos bombeiros. A intranquilidade de Vargas traduz-se em mais movimentos na cama, antes de acordar, agitado. Afinal, não havia qualquer toque a reunir nos bombeiros para acorrer à derrocada, era o telemóvel que chiava e a imaginação do inspector integrara aquele alarme no sonho.
O ensonado policial ainda foi a tempo de atender.
- Inspector, é preciso ir à pensão da Etelvina. Apareceu um travesti esborrachado nas traseiras.
- Bom dia também para ti, rosnou Vargas, já a preparar-se para erguer-se, num modo característico de o fazer, usando a cabeça e o pescoço, apoiados na almofada, como alavanca.
A dona da pensão era uma velha conhecida de Vargas, inspector à moda antiga, dos que acamaradam com malandros, prostitutas e desvalidos. Etelvina transportava uma história de vida impressionante. Abandonada ainda criança, aprendeu na rua as manhas do espírito de sobrevivência. Da pequena criminalidade passou à prostituição. Ganhou dinheiro suficiente para montar uma pequena pensão de sobe e desce. Ultimamente era local de engate de travestis.
- Ai Vargas, que grande tragédia! Coitadinha da Zeza. Estava a juntar uns trocos para voltar ao Brasil. Dizia-se farta desta vida. Afinal, não teve tempo. Está ali espalmada.
Etelvina chorava a morte da inquilina do quarto 125 da pensão. Fora ela quem encontrara o corpo.
- Levanto-me sempre cedo, ponho a telefonia a tocar baixinho e abro a janela para arejar o quarto. Quando olhei para baixo vi a rapariga estendida ao comprido, uma poça de sangue ao lado.
- Rapariga, rapariga… Agora não trabalhas com travecas?
- Tem tento na língua! Se as moças se sentem raparigas, raparigas são.
- Seja! – condescendeu o inspector. Ninguém ouviu nada, um grito, o baque do corpo a cair, qualquer coisa?
- Eu não ouvi e as amigas dela que ainda cá estavam também não.
- Que história era essa de querer voltar para o Brasil? Quem tem planos desses não se mata.
- É verdade! Custa-me a crer.
- Fazes ideia se ela teve cá clientes ontem à noite?
- O meu quarto é num cantinho mais sossegado, não ouço nada do que se passa. Mas o normal é ter recebido alguns. Nem imaginas a quantidade de tipos que se satisfazem com estas miúdas.
- Faço uma ideia.
- O Jeremias é que os topa. Eu estou sempre aqui resguardada. Diz ele que um dos frequentadores habituais é o filho da Amélia. Lembras-te dela? A que esteve presa há uma porrada de anos por ter sufocado um bebé.
- Sim, lembro. Sabes dela?
- Acho que tem uma vida calma. É viúva de um guarda prisional. O pai do moço que aqui aparece.
Manuela era outra locatária da pensão de Etelvina. Habitava o cómodo 127, na porta ao lado de Zeza. Interrogada por Vargas, garantiu nada ter ouvido de estranho no quarto da amiga. Confirmou que Zeza preparava-se para regressar ao Brasil e que a tentara convencer a seguir o mesmo caminho. Frisou que o provável suicídio não condizia com os planos da camarada de profissão.
Jeremias, de alcunha O Fora da Lei, era o protector dos travestis e companheiro de vida de Etelvina. Não poderia ser considerado chulo, fazia realmente serviço de segurança. Ainda assim uma concessão aos princípios que, enquanto jovem, o fizeram encetar um incipiente percurso de anarquista, fabricando bombas caseiras, visando assustar o sistema. Agora, já depois de velho, valia-se do corpanzil avantajado e fazia guarda aos travestis, naquela praça suja com merda de pombo, onde os clientes eram seduzidos pelos buços, mamas falsas e coxas torneadas. Quando previa confusão, abeirava-se do prevaricador e usava sempre o mesmo estribilho:
- Qual é a tua, ó meu?
Naquele dia carregava um semblante plúmbeo, com olhos marejados.
- Não aconteceu nada aqui fora, foi tudo calmo. Mas se eu estivesse mais atento talvez tivesse evitado isto, algum sinal há-de ter dado o assassino.
Depois de ouvir Etelvina, Manuela e Jeremias, o inspector Vargas pediu a Gomes que tratasse de fazer uma vistoria completa ao quarto de Zeza, recolhendo todos os elementos que ajudassem a deslindar o caso.
- Mas estamos a pensar na hipótese de suicídio, certo? Ninguém ouviu ruídos estranhos, não há sinal de entrada forçada no quarto. A janela estava aberta e o corpo no chão.
- Sim, mas vamos averiguar bem.
- Já agora recolher as impressões digitais no quarto…
- Evidentemente.
- Mas tem noção de que isto deve ter mais exemplares do que o arquivo do registo civil onde se guardam as impressões digitais dos cartões de cidadão?
- Faz o que te digo.
Os casos foram-se sucedendo na cadência normal de uma brigada policial, até que chegaram notícias. Havia resultados das recolhas feitas no quarto de Zeza. Como se supunha, dezenas de impressões digitais. Algumas catalogadas na polícia, outras completamente desconhecidas.
O riso escarninho de Gomes indiciava zombaria.
- Diz lá, Gomes. Que novas me trazes? Encontraram muitas impressões digitais conhecidas?
- Algumas…
- Deixa-te de merdas. Já vi que queres conversa. Vomita o que sabes!
- Bom… Lembra-se do rapaz que morreu no mesmo dia do travesti, aquele que o chefe declarou de imediato que teria sido suicídio? Foi mesmo suicídio, garante a medicina legal. Só que… E fez um compasso de espera, que muito irritou Vargas.
- Só que o quê? Desbobina.
- Só que uma das impressões digitais encontradas no quarto do travesti era do suicida.
- Como?
- Pois é. E também temos a autópsia da Zeza. Não se suicidou. A menos que tenha caminhado e voado depois de se matar. Havia lesões no pescoço. Morreu estrangulada. A queda foi posterior. E tinha alguns sinais de luta, pele de alguém sob as unhas. Junto aos pés do corpo havia um vomitado recente, mas não pertencia ao travesti.
Não era possível perguntar ao suicida por que estariam as suas impressões digitais num possível cenário de crime. Havia que procurar respostas nos objectos, sobretudo nos que são autênticos espiões. O telemóvel de Guilherme guardava uma informação relevante. Três chamadas telefónicas trocadas com um tal de Afonso nas horas que antecederam o suicídio.
Feitas as diligências, percebeu-se que Afonso era colega de trabalho de Guilherme. Chamado a depor, apresentou-se nervoso, exacerbando o ar afectado e os excessivos ademanes. Vargas conduziu o interrogatório como uma conversa informal. Quis saber qual o grau de amizade entre Afonso e Guilherme, que tarefas partilhavam na empresa, que hábitos sociais os juntavam nas horas de lazer, como fora encarada a morte na agência de comunicação. Nenhuma pergunta sobre os últimos telefonemas. Apesar do diálogo cordato, era indisfarçável o desassossego de Afonso, que passou todo o encontro tamborilando com a mão direita na berma da secretária do investigador.
- Chefe, não quero faltar-lhe ao respeito nem questionar os seus métodos, mas só faltou convidá-lo para tomar café. Isto pareceu uma conversa de treta. Protestou Gomes. Quanto a Vargas, moita-carrasco. Fez orelhas moucas.
A resposta demorou algumas horas.
- Este menino Afonso é uma bela peça… As impressões digitais do rapaz também estão no quarto do travesti. Enquanto aqui esteve bateu com os dedos na mesa. Tirei as impressões digitais e pedi aos camaradas da científica para cruzarem a amostra com o material recolhido na pensão. Bingo!
Vargas estava extático com os avanços na investigação. Mas não sabia o que significariam. Os dois óbitos, de Zeza e de Guilherme, ocorreram sensivelmente à mesma hora, segundo as perícias forenses. Era improvável que as impressões digitais do rapaz estivessem relacionadas com o assassinato, embora surgissem na janela por onde fora atirado o corpo do travesti. Seriam circunstanciais. Mas Afonso parecia esconder algo. A presença dele na pensão estaria de algum modo relacionada com a visita de Guilherme?
O inspector seguiu um rumo que Gomes já lhe conhecia. Quando se aproximava de deslindar um caso, fechava-se sobre si mesmo. Caminhava pelo escritório, cigarro na mão, falando sozinho e retorquindo réplicas imperceptíveis para os observadores. Era o caso a construir-se, a oferecer diferentes linhas de solução, que iam sendo eliminadas pela mente de Vargas, até que o investigador alcançava uma possível conclusão e tratava de ir para o terreno confirmar a hipótese.
O regresso de Vargas ao apartamento de Guilherme foi precedido de uma visita à vizinha da frente do jovem falecido. A velhota pareceu reconhecê-lo, mas não demonstrou a mesma vontade de diálogo que manifestara no dia do passamento. Rosto fechado, olhar desconfiado, a senhora recebeu o inspector respeitosamente, mas sem entusiasmo.
- Boa tarde. Precisa de ajuda?
- Queria falar consigo sobre o seu vizinho da frente, talvez tenha alguma informação importante.
- Não sei. Que quer saber?
- No dia em que ele morreu, ou na véspera, ouviu alguma coisa?
- Por acaso, talvez saiba de algo…
- E não podia ter-me dito quando cá estive?
- O senhor despachou-me o mais depressa que pôde. Nós, os velhos, estamos habituados à pressa dos mais novos em despachar-nos. Na altura percebi perfeitamente que o senhor não estava para me aturar.
- Isso é impressão sua. A minha vida é ouvir toda a gente que tenha informações importantes. Acha que consegue ajudar-me?
- Não sei se ajudo. Sei que na véspera de o rapaz aparecer morto, já perto da meia-noite, veio aí um tipo, mais ou menos da idade dele. Parecia nervoso ou desastrado, porque fez muito barulho a mexer nesse vaso aí junto à porta do Guilherme. Ouvi o barulho e vim espreitar pelo olho mágico da porta.
- E viu alguma coisa estranha?
- Ele descobriu uma chave por baixo do vaso. Pegou nela, entrou no apartamento do Guilherme. Esteve lá dentro nem meia hora e saiu. Não se ouviu um pio durante esse período. Ao sair, escondeu de novo a chave e foi-se embora.
- Já tinha cá visto esse rapaz alguma vez?
- O Guilherma andava sempre sozinho. Acho que nunca tinha visto o outro.
Vargas agradeceu a informação e, mal voltou costas à mulher, remexeu no vaso, encontrando a chave resguardada, que usou para entrar. Teve sorte, porque a reparação que se sucedera ao arrombamento da porta não obrigara a mudar a fechadura. Fora um erro considerar de imediato a tese de suicídio. A dúvida criativa era mesmo a forma mais eficaz de encarar todos os casos. O inspector sabia o que procurava. Tirou dos bolsos os equipamentos para recolha de impressões digitais. Dirigiu-se, imediatamente, à mesa da sala, onde esteve pousado o bilhete do suicida. Admitia que o local estivesse contaminado, já muitas pessoas ali tinham entrado depois, mas importava confirmar a presença de Afonso naquele espaço.
O passo seguinte foi telefonar a Ana, a colega que alertara para a ausência suspeita de Guilherme. O inspector pediu-lhe que passasse na polícia, mas que nada dissesse sobre a visita no escritório. Era importante que ninguém na agência soubesse.
Ana mostrou-se surpreendida pela convocatória. Afinal, um suicídio não estava resolvido por natureza, quis saber. Realmente, tudo aponta para morte auto-infligida, aquiesceu Vargas. Mas o caso revelara-se mais complexo do que se suporia de início e a ajuda de Ana seria determinante para dar rumo definitivo à investigação.
- Seria capaz de identificar a letra de Guilherme?
- Acho que sim. Por vezes, é necessário escrever alguns recados. Nem sempre se usam os meios digitais.
Vargas passou-lhe o bilhete de suicídio para a mão. Desenhou-se na expressão de Ana um contorno de surpresa absoluta.
- Esta não é a letra do Guilherme. A caligrafia dele era muito redondinha, bonita. Estas letras são angulosas, bicudas, horríveis.
- Seria possível ser a letra de outro colega seu?
- Agora que o diz…. Podia ser do Afonso.
Chegara a hora de receber Afonso para novo interrogatório. Mas o tom seria diferente do primeiro. Havia que quebrar as ténues defesas do jovem suspeito. A experiência do inspector facilitou o apuramento da verdade. Usou uma estratégia que foi apurando ao longo de toda a carreira, baseada no princípio “se queres saber não perguntes”. Mais do que um interrogatório foi uma sessão de acusações, insultos e ameaças:
- Falaste ao telefone com Guilherme pouco antes dele morrer. Foste a casa dele a seguir e inventaste um bilhete de suicídio, que redigiste com as próprias mão. As tuas impressões digitais apareceram no quarto do travesti Zeza, na pensão que sabes bem onde fica. Além de larilas és um assassino. Na cadeia vais divertir-te bastante na apanha do sabonete.
Estarrecido, Afonso mostrava-se a um passo de um pranto desabrido, soluçando com a cabeça baixa.
- É mentira, não tive culpa, não tive culpa… Foram as últimas palavras que se ouviram a Afonso antes de um choro convulso.
A confissão chegou mais tarde. Afonso era dono de uma mente retorcida. Homossexual, pretendia seduzir Guilherme, mais dado às mulheres, embora tímido. Convenceu o amigo a visitar Zeza, dizendo-lhe tratar-se de uma mulher experimentada. Tinha a expectativa de que o contacto homossexual com o travesti que Afonso frequentava pudesse abrir a mente do amigo. Não aconteceu. Guilherme perdeu a cabeça quando descobriu o pénis de Zeza. Agoniado, abriu a janela e vomitou. Bateu no travesti. Arrependeu-se da violência, pediu desculpa, pagou e saiu. Os acontecimentos sucederam-se e extravasaram o planeado por Afonso. O amigo, indignado, telefonou-lhe. Insultou-o, garantiu-lhe que nunca mais lhe falaria. Estava tão transtornado que ameaçou matar-se e contar tudo, através de uma carta de despedida, que seria um libelo acusatório da depravação de Afonso.
- Eu sabia que ele tinha uma chave de casa escondida por baixo do vaso, junto à porta do apartamento. Só tive de conseguir entrar no prédio atrás de um vizinho. Subi ao apartamento de Guilherme, usei a chave ali guardada para alguma emergência. Entrei. Não havia movimento. Vi a carta de suicídio na sala e o corpo na cama. Não sei se estaria apenas inconsciente ou já morto. Tive receio de aproximar-me. O bilhete de suicídio contava a história, acusando-me e dizendo que se matava por não suportar o nojo que sentia dele próprio. Escrevi um novo bilhete, com o conteúdo que o senhor conhece.
- E a Zeza, quando a mataste?
- Foi de seguida. Visitei-a como cliente, tacteando, procurando perceber se o Guilherme referira o meu nome durante a sua fúria. Sim, isso tinha acontecido. Pedi desculpa e actuei como cliente e amante. A Zeza tinha um fraquinho por mim. Enquanto fazíamos amor apertei-lhe o pescoço. Era um dos jogos eróticos que, por vezes, praticávamos. Quando ela percebeu que, desta vez, seria diferente, tentou defender-se, arranhou-me, mas não conseguiu impedir-me.
- Não tens nojo de ti? Só faltava dizer que tiveste prazer.
- Por acaso foi dos melhores orgasmos da minha vida. Depois abri a janela e lancei-a.
- Julgavas que sairias disto impune?
- Nunca imaginei que dois suicídios pudessem vir a ser investigados.
Dias depois da prisão de Afonso, a brigada foi chamada a casa de Amélia. A mãe de Afonso apareceu morta. Tudo apontava para um passamento natural. A mulher, que vencera múltiplas decepções e que via no filho, bem-sucedido profissionalmente, a redenção de uma vida atribulada, não resistiu à verdade. Era como se o mito do eterno retorno fosse hereditário e Afonso estivesse agora a atravessar o lado errado da noite.
- Parece morte natural, chefe!
- À cautela, vamos investigar. A dúvida criativa é que nos conduz à verdade.
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Nota: Este conto nasceu de um pensamento: E se as personagens de algumas canções que ouvi saíssem das canções e andassem por aí, a viver uma vida ou a morrer uma morte diferentes das que as letras das músicas lhes reservaram inicialmente? Vai daí urdi a história que acaba de ler, cruzando personagens criadas por mim com outras da lavra de JP Simões, Sérgio Godinho, Jorge Palma e José Mário Branco. A banda sonora para este conto pode ser escutada de seguida: