01 janeiro 2021

Escritos: Conto de Confinamento

E, de súbito, regressou. A vontade de escrever, ausente há anos, voltou. Não foi de um jorro. Apareceu num final de tarde de domingo, emergindo da monotonia de mais uma jornada igual a tantas outras de confinamento. Depois de ver uma série televisiva e de passar os olhos, desinteressado, por um jornal diário, concorrente daquele em que trabalho, sentei-me em frente ao computador. Abri o processador de texto e a folha em branco deixou de intimidar-me.

Há muito não experimentava o frémito de transformar os pensamentos em caracteres, fora da lógica da técnica jornalística que me paga as despesas quotidianas. O instinto inicial foi o de encetar um diário de confinamento. Comecei por inscrever na folha digital o meu nome literário, Gaspar Peralta. Registei algumas impressões sobre aquele dia, ficcionando uma realidade sem interesse literário.

O domingo acordou maldisposto. Pela primeira vez nas últimas semanas, não pus o nariz fora de portas. Os passeios são muito pouco higiénicos sob chuva.
Agora que a liberdade de movimentos está limitada, irei pagar o Imposto Único de Circulação. Gosto de ironias. Mesmo das ironias de Estado.
Entretenho-me gerindo a carreira do David Bowie. Sou medianamente bem-sucedido. Experimento, em seguida, administrar a vida artística da Tracy Chapman. Não ganho tanto. Parece que o videojogo Rock Stars, velhinho de décadas, é aproximadamente realista.
Este empenhamento nos vetustos jogos de computador com mais de vinte anos está a deixar a literatura para trás. O Roland Barthes vai continuar montado no José Saramago, em cima da minha cama. Não é grave. Os livros não mancham lençóis nem edredões.

Pensei que o tempo livre daria azo, nos dias vindouros, sem periodicidade nem disciplina, a novas entradas no diário. E aconteceu mesmo. Na quinta-feira posterior, o sangue de aspirante a escritor ferveu mais uma vez, numa situação inesperada. O dia começara mal, o banho tomado com água gelada. A caldeira de aquecimento gripara. Passei horas às voltas com o aparelho. Experimentei mil e uma intervenções, procurando seguir um método minimamente científico: de cada vez que mexia numa peça, testava o funcionamento logo depois, de modo a despistar, uma a uma, as possíveis falhas. Fiz aquilo que os especialistas chamam de sangria do sistema, retirando toda a água das canalizações do aquecimento. Voltei a atestar os canos. Debalde. A água mantinha-se fria. Desatarraxei e voltei a apertar inúmeros parafusos e porcas, certamente relevantes para o funcionamento geral do mecanismo. Limpei a sonda de ignição, verifiquei se a bomba de circulação de água estava em movimento. Gastei horas. Mas o problema persistiu. No painel de comandos manteve-se a coreografia de luzinhas verdes e vermelhas, piscando à vez, acompanhada pelas sinfonias de roncos do interior do dispositivo. Boquiaberto, olhando para a chaparia branca, cobertura de todas as tubagens, buscava decifrar o enigma. Repentinamente, alheei-me do percalço doméstico, peguei no caderno e na esferográfica que usara para registar as tentativas e os erros do processo tendente à reparação, pousados na mesa da cozinha, e registei mais uma entrada no diário ficcionado:

O vírus não se transmite por via sexual, diz um especialista em generalidades, dos que abundam nas manhãs e nas tardes televisivas. É uma informação útil. Bom seria ter a minha vizinha do terceiro esquerdo entre a audiência do programa. Melhor ainda se a afirmação do entendido lhe despertasse ideias compatíveis com as minhas,
Entretanto, fui às compras. O decreto do estado de emergência impede a saída do concelho de residência, durante quatro dias. Desloquei-me ao supermercado e à farmácia no centro comercial do município vizinho. Os velhos fartam-se de passear. Há um que vai à botica todos os dias. Pelo menos, é essa a advertência da farmacêutica, num tom recriminador. O velho não se importa, continua a inventar pretextos para prolongar a conversa e manter-me em fila de espera.
Mudo-me para o supermercado. Dezenas de pessoas aguardam autorização para entrar. Nunca os vigilantes se sentiram tão importantes. Enluvados, com o peito cheio e sinalética apropriada – entre! espere! -, só lhes falta um capacete branco para parecerem sinaleiros. Ridículos já são.
Concluo que os portugueses são muito crentes. Não haverá cerimónias religiosas pascais – nem o 13 de Maio vai realizar-se, demónios! -, mas as tradições são para manter. Os queijos tipo serra estão esgotados, as amêndoas escoam-se rapidamente e há fila no talho. Os clientes vêm pelo cabrito. Acho bem. Mantém-se o mais importante da Páscoa: encher a mula. Há o receio do vírus, da diabetes, do colesterol e dos ataques cardíacos. Mas sempre existe a esperança da ressurreição. A época é propícia.

A segunda prosa, em menos de uma semana, aclarou-me as ideias. Era, realmente, altura de voltar à ficção. A pandemia levou o jornal em que trabalho, o Diário da Manhã, a colocar alguns jornalistas naquilo que o estrangeirismo designa por lay-off, mas que em português pode definir-se como pontapé no cu com efeitos imediatos, não se sabe bem até quando. Com jogos de futebol, corridas de bicicletas, de atletismo ou de automóveis paralisados pelas chamadas medidas de confinamento, os redactores da secção de desporto tinham pouca utilidade. Oitenta por cento da secção foi mandada para casa. Ao contrário do costume, não fiquei entre a minoria.

Estar sem trabalho e ficar privado do contacto com os camaradas de redacção não me desagradava, confesso. Trabalho para ganhar dinheiro, não por prazer. Se pudesse escolher, seria turista a tempo inteiro. Não acho que o trabalho dignifique o homem, como se ouve dizer. O que dignifica o homem é ser igual a si próprio, fiel à sua consciência, não ceder às maiorias nem trocar princípios por benesses. Tudo motivos para não ter grandes saudades do ambiente da redacção. O corte salarial, esse sim, incomodava-me. Quanto menos dinheiro no bolso, maiores necessidades de trabalho no futuro, mais dias em falta para a ansiada reforma.

A escrita literária é um prazer dos tempos de ócio. Talvez por isso tenha regressado nesta época de afastamento das obrigações profissionais. Mesmo escrevendo por deleite, inevitavelmente surgiu a ideia de ser novamente publicado.

Há quase uma década escrevi um romance. A crítica gostou, enaltecendo o talento do estreante. Assinei com pseudónimo, creio que os elogios não resultaram do conhecido corporativismo dos jornalistas. Numas publicações destacou-se o estilo enxuto e o tom acutilante, roçando o escatológico; noutras a coragem de escrever com a linguagem do homem da rua. Se não olhasse o mundo com cinismo, poderia ter-me sentido um Bukowski de trazer por casa. Mas encarei as reacções com bonomia, cultivando uma certa aura de desprendimento. Para desespero do meu editor, recusei fazer apresentações do livro e nunca alinhei em sessões de autógrafos. Não sei se essa foi a causa principal da frieza dos leitores, que mantiveram os exemplares nas estantes das livrarias. Ainda se arrastam pelos mercados do livro montados em estações de comboios para escoar os volumes que atravancam os armazéns das editoras.

Agora, anos volvidos, o segundo impulso literário em poucos dias transmitiu-me a certeza de que voltaria a escrever sem as amarras da estrutura jornalística. Mas deixou-me na dúvida: prossigo em registo de diário ficcionado, arrisco novo romance, ensaio um conto só para ver como fica? Consumi dias na indecisão. Optei por não me pressionar. Pensava no assunto, mas não me obriguei a tomar decisões. Aproveitei para ir lendo. Fui saindo de casa, recorrendo aos diferentes pretextos que o estado de emergência admitia como válidos para escapadas à via pública. Sempre aproveitei as caminhadas para reflectir. E fi-lo, descomprometidamente. Achei que um conto do confinamento seria uma boa ideia. Não valia a pena embarcar numa distopia, porque nada poderia ser mais distópico do que a realidade: o mundo inteiro fechado em casa, amedrontado por um vírus altamente contagioso, embora muito pouco letal. As empresas fechadas, os trabalhadores a caminho do desemprego, alguns já a passar fome. Teria de ser um conto sobre a esperança, uma peça luminosa, poética, distante do meu romance de estreia.

Acreditem ou não, foi mesmo essa a decisão. Vendo as coisas à distância, é cristalino que o afastamento social e o ambiente geral da sociedade estavam a afectar-me. Então eu queria embarcar numa viagem - curta como um conto, é certo - nas águas da literatura de auto-ajuda?

Felizmente, a realidade sobrepõe-se aos desígnios insondáveis dos espíritos mais atreitos a deixar-se adocicar e amolecer. Como já vos contei, as caminhadas fazem parte do meu processo reflexivo, mas também do criativo. Enquanto espanco os pés e as articulações com as vigorosas passadas, ponho o cérebro a funcionar: penso num enredo, sou parteiro de personagens, crio ambientes, estabeleço um tom narrativo. Este processo pode durar dias até transformar-se em algo concreto.

Portanto, de cada vez que saía de casa, tentava achatar a curva abdominal e procurava a linha narrativa para o nascimento do tal conto de esperança. Se cumprisse o desígnio, talvez encontrasse um editor que substituísse Francisco Manuel, responsável pelo lançamento do meu romance de estreia – e único -, mas sem pachorra para aturar os meus instintos de prima donna, definição que escolheu para a postura assumida de boicote à promoção do livro.

Numa das caminhadas reparei num café aberto, apesar de os estabelecimentos do género estarem intimados ao encerramento pelas autoridades sanitárias. As cadeiras e as mesas da esplanada amontoavam-se ordenadamente. A iluminação interior regulava-se por um nível frouxo. A porta apenas entreaberta. Mas existia movimento. Um homem baixo, com uma cabeleira e um bigode à Chalana pré-calvície, deslocava-se na direcção exterior. Vendo-me olhar, interpelou-me:

- Bom dia, amigo. Quer tomar um cafezinho?
- Mas está aberto? Não é permitido, pois não?
- Se não for da polícia, pode vir todo lampeiro, que será bem-vindo.

Entrei. A formulação do convite estimulou a minha aversão à autoridade e o meu impulso natural para a insubmissão. Aquele homem sabia cativar a clientela, com muito mais engenho do que os infelizes plantados à porta dos restaurantes, em locais de acesso turístico, assediando os passantes. O cimbalino era fracote, uma água tépida, levemente manchada de castanho, um aroma praticamente nulo. Mas a sensação de fintar as autoridades excitava-me. Além de mim e do meu anfitrião, homem prolixo que já arranjara maneira de dizer-me o nome completo, Carlos Manuel Antunes da Silva, havia mais um indivíduo na sala, encostado ao balcão. Parecia ter proximidade pessoal e confiança com o dono do café.Discutiam as notícias da televisão, todas sobre a pandemia, num registo crítico, por vezes satírico. Eram dois descrentes das necessidades de protecção individual e do distanciamento físico. Brincavam com as normas sanitárias, dispondo-se a quebrá-las sem rebuços.

Esse cliente saiu.
- É impecável, agora está bem na vida. Mas passou um mau bocado. Ficou doente, perdeu o emprego, e a mulher pôs-se a andar. Um dia chegou a casa e nem móveis lá tinha. Eu bem lhe dizia que mulheres há muitas, mas ele foi-se abaixo. Só dizia que dera tudo à mulher para levar um par de palitos. Bebia muito, passava aqui horas a lamentar-se da sorte. Tornámo-nos amigos. Somos o roque e a amiga, diz a minha patroa.

Carlos, sem me conhecer, desenovelava a biografia de António, o amigo. Só interrompeu a narrativa para encher um pequeno cálice, pouco maior do que um dedal, com um líquido alaranjado, e beber de um trago aquele licor. Enquanto ele estalava a língua em sinal de prazer, aproveitei o interregno alcoólico. Paguei o café e despedi-me. O dono do espaço seguiu-me até junto da porta, convidando-me a regressar.

Estava encontrado um protagonista para o conto. Tudo em Carlos apetecia ficcionar: o sotaque nortenho cerrado, o aspecto parado nos anos de 1980, algumas expressões carregadas de lastro popular, um certo tom pícaro. Como iria redigir um conto de esperança a partir de um caracter daqueles é que me escapava. Tinha de prosseguir a investigação, ou seja, nada como voltar àquele estabelecimento entreaberto em meia penumbra.

E assim foi. Já levava mais de uma semana de visitas diárias, matutinas, quando descobri a existência de um truque para despistar qualquer tentativa de ingerência das autoridades pelo desrespeito, reiterado, à ordem de encerramento. Numa coluna perto da porta estava afixado um aviso: Espaço em obras, entrada e saída de trabalhadores. Até o mais bem-intencionado dos polícias detectaria a falsidade do comunicado, mas sempre funcionava como argumentário, no caso de algum agente da autoridade ali entrar em missão repressiva.

- O anúncio é um bom esquema, não é? - Carlos estava, notoriamente, satisfeito com a artimanha.
- Ó doutor – quando lhe disse ser jornalista passou a tratar-me por doutor -, como tem reparado, costuma vir cá a malta das obras. Estão a construir aqui perto dois prédios e este é o único sítio para se beber uma cerveja e trincar uma bifana. Se a polícia entrar aqui agora, eu digo que vim controlar as obras e que o doutor, meu amigo, veio comigo. Mas se aparecem quando cá estiver meia dúzia de trolhas tenho de justificar-me. Aponto a cave como local das obras e digo que, num intervalo, a malta veio cá a cima petiscar qualquer coisa. Todos os trabalhadores têm direito a uma pausa.

O conhecimento de Carlos, levou-me a perceber estar perante alguém com tendência para acreditar nas próprias ficções, um bocado mitómano. Não quero chamar-lhe aldrabão, porque, apesar dos trabalhos em que me envolveria, achei-lhe piada desde o primeiro encontro. Revelou-se um fura-vidas como julguei existir apenas na ficção.

O café ocupava uma esquina, tendo entrada por duas ruas. Uma das portas permanecia fechada, a outra, como já expliquei, ficava entreaberta. O espaço era amplo e o balcão situava-se no ponto oposto ao da entrada em funcionamento. Ao lado do balcão a escadaria, em caracol, de acesso à cave. Numa das manhãs em que trocávamos repetidos, na sempre colorida linguagem do meu interlocutor daquelas manhãs de confinamento, parou um carro da polícia junto ao estabelecimento. Alerta, Carlos desatou a correr de dentro do balcão para a cave e acenou-me para acolitá-lo. Por impulso, acelerei rumo às escadas, imergindo na escuridão do andar de baixo, na peugada do relapso empresário. O meu guia remexeu nos bolsos, tirando o telemóvel de uma algibeira das calças para transformar o dispositivo de comunicação numa lanterna. Na parede do fundo, à direita, estava colocada uma estante de contraplacado, sem recheio. Carlos arredou-a e atrás da peça de mobiliário surgiu uma porta, pintada de branco, como a parede, que ele desbloqueou. Passei para a outra divisão, uma garagem onde repousava, estacionado, um carro comercial, com área de carga refrigerada. O meu parceiro de aventura – e nem imaginava eu que aventura! – recolocava a estante na posição original, evitando fazer barulho, e trancava a porta. Respirando fundo, piscou-me o olho e dirigiu-se calmamente para o veículo ali aparcado, colocando-o em movimento. Avançámos pelo que percebi ser uma ruela nas traseiras do café.

- O talho ao lado do meu café é que tinha esta segunda entrada, para descarregar os camiões de carne e colocar os produtos nos frigoríficos. O senhor Manuel, o dono do talho, falou-me nas dificuldades do negócio e disse-me já não precisar deste espaço. Comprava cada vez menos carne e bastavam-lhe os frigoríficos da loja. Pus esta cabecinha a pensar e concluí que um espaço mais recolhido ainda poderia ser-me útil. Fiz negócio com o homem. Comprei-lhe parte do terreno e fizemos obras sem informar a Câmara Municipal e sem licença. Para todos os efeitos, eu não tenho saída para as traseiras.
Atónito e, confesso, ainda tremelicante, olhei com incredulidade para Carlos, já rolávamos há uns bons cinco minutos.

- Que merda é esta? Então o cartaz à entrada não era para dares resposta à polícia? E agora, como vais justificar o facto de o café estar aberto sem ninguém lá dentro?

- Hoje não podia dar-me ao luxo de ter de prestar esclarecimentos, estou com pressa. Quanto ao café aberto, posso sempre inventar que alguém entrou, que os trolhas saíram e deixaram a porta aberta. Qualquer coisa.

- Tens sempre um esquema, não é?

Eu já não escondia a irritação. Passara a tratá-lo por tu. E nem esperei por resposta à pergunta anterior, ordenando:

- Pára esta merda para eu sair!
- Não pode ser. O doutor já sabe muitos segredos meus. Não posso deixá-lo na boa-vai-ela com toda essa informação. Vem comigo à Galiza. Temos uma encomenda para trazer hoje para Portugal.
Indiferente aos meus protestos e lamentos, Carlos acelerava já na auto-estrada. Conservava uma calma assustadora, de uma frieza de gelo. Eu seguia no carro com alguém que burlava as leis e enganava a boa-fé das pessoas com notável indiferença.

Na aproximação a uma estação de serviço perguntou-me se eu levava a carteira. Olhei para o indicador de combustível e não era preciso abastecer. Admiti que, na pressa da fuga, se esquecera do dinheiro. Mas, já no estabelecimento, na ocasião de fazer contas, sacou de uma nota e pagou o consumo de ambos.

- Afinal para que querias saber se eu trouxe a carteira? Pelos vistos não preciso de pagar a conta.
- Pois não. Mas é preciso que tenhas a carta de condução contigo, porque vais tu pegar no carro.
Finalmente, tratava-me por tu. Mas não se tornara mais próximo nem mais caloroso por isso. Pelo contrário.

Objectei. Viajava contra a minha vontade, só assumiria o volante para regressar a casa. Estrebuchei quanto pude. Nada demoveu o destinatário da fúria e nada perturbou o seu semblante.

- Não vou estar aqui com mesuras nem quero muita leorna. Temos de ir à Galiza. É possível que a polícia esteja a fazer controlo nas fronteiras. O meu cartão de cidadão está caducado e a minha carta de condução suspensa. Portanto, é conveniente passar a outro a responsabilidade de falar com a polícia.
- É inacreditável. Como fui meter-me numa embrulhada destas - lamentei-me com voz sumida, mas já sem convicção para impor fosse o que fosse ao meu antagonista.
- Não tens curiosidade sobre o motivo da viagem? Os jornalistas são tipos curiosos. É isso que os mata - disse Carlos, em tom desafiante, levemente ameaçador. Irónico como ainda não o vira.

Não sei se queria assustar-me, mas esse foi o resultado da conversa. Tentei sacar-lhe informações sobre o motivo da deslocação, antecipando qualquer ilegalidade: tabaco de contrabando, bebidas alcoólicas de contrafacção, algo para ser escoado ao balcão do café. Carlos trancou o ferrolho do diálogo, recusando qualquer explicação.

A ritmo inconstante, eu ensaiava um protesto:
- Se eu não estivesse no café, como irias passar a fronteira sem documentos?
- Tinha um amigo apalavrado, mas a pressa da saída não me permitiu colocar em prática esse plano.
- E não podias vir de noite, não seria mais discreto?
- Que raio de jornalista és tu? Só fazes perguntas estúpidas. Já viste um pequeno comerciante, com um carro comercial, a transportar mercadoria de primeira necessidade de noite? Isso é para os camionistas.
- Ah sim? E se a polícia quiser saber o que vou fazer à Galiza?
- Vais buscar marisco. Nada mais a declarar.

A viagem continuou, mas o ambiente no habitáculo do automóvel agrisalhara-se e arrefecia a cada quilómetro percorrido. Essencialmente por minha responsabilidade. A postura do ocupante do apelidado lugar do morto permanecia insistentemente alheia a todas as diligências que tenteei para o descontrolar. O à-vontade de Carlos exasperava-me.

Seguindo as indicações do meu parceiro de viagem, conduzi até um armazém velho, um edifício alto, com alguns vidros partidos na parte superior da fachada, junto ao telhado. Dali víamos dezenas de iates atracados. De um deles vieram três homens. Dirigiram-se a Carlos, cumprimentando-o com entusiasmo. Falavam galego e perguntaram quem era eu.

- Um amigo de confiança.
- Tens a certeza? Ele que não coma o marisco pelo caminho, disse o mais alto do trio, fazendo brilhar um dente de ouro com o riso expansivo provocado pela graçola.

Apesar de os quatro homens se moverem desenvoltamente, eu sentia tensão no ar. Talvez fosse medo meu. Iria mesmo ter de transportar contrabando para Portugal? Maldizia o acaso de estar no café no momento em que a polícia estacionara nas imediações.

Deram-me instruções para introduzir o carro no armazém. Entrei às arrecuas, encostando perto de umas câmaras frigoríficas industriais, que guardavam dezenas de caixas de esferovite, empilhadas. Os três galegos cuidaram de dispor a carga na área refrigerada da nossa viatura. Inacreditavelmente, era mesmo marisco que eu via a ser introduzido no carro. Sapateiras, lagostas, camarões de tamanhos distintos, bivalves. Alguns tentáculos mexiam-se, denunciando a frescura do pescado. Finda a operação, Carlos recebeu um papel, a guia de transporte. Cumprimentámos os espanhóis e iniciámos a viagem de volta a Portugal.

Carlos é um pândego de alto coturno, pensava eu. Inventou um clima de mistério, armou ao pingarelho e, no deve e haver, estava mesmo a transportar marisco. O gajo só quis gozar comigo, testar-me. Estes pensamentos benevolentes não alteraram a postura assumida. Como uma criança birrenta, iniciei a viagem com cara de poucos amigos e nenhumas falas.

O controlo policial fronteiriço era mesmo realidade. Enfrentei os agentes descontraidamente, pois confiava na legalidade da expedição. Mostrei os meus documentos e o papel entregue pelos galegos a Carlos. Um dos operacionais pediu para fiscalizar a carga, antes de nos mandar seguir, com um remoque humorado:

- Para que querem tanto marisco se os restaurantes estão fechados e a malta nem pode juntar-se aos amigos? Deixem ficar qualquer coisa para nos entretermos.

Não me pareceu que se candidatasse a um suborno ou oferta. Era mesmo apenas para desanuviar a tensão, sempre presente numa operação policial, por inofensiva que se revele.

Quando arrancámos, Carlos largou um suspiro de alívio. Apeteceu-me brincar com a situação, mas achei mais digno manter a figura de tipo indignado pela situação a que fora exposto.

Uns cinquenta quilómetros antes de chegarmos ao ponto de partida, Carlos ordenou que tomássemos a saída seguinte da auto-estrada. Indaguei o motivo, sentindo novamente motivos para alarme.

- O armazém onde vamos descarregar o marisco é aqui à beira, informou-me, sem detalhes.
O destino era uma construção, com aspecto de já ter funcionado como equipamento de apoio a uma exploração pecuária ou agrícola, conclusão talvez precipitada pela envolvente, repleta de campos de cultivo e pastagens. Fomos recebidos por dois homens. Um deles era António, o amigo de Carlos que conheci na primeira visita ao café.

- Trouxeste o doutor contigo?
- Teve de ser, houve um pequeno azar no café. A polícia parou o carro-patrulha à porta e eu tive de fugir. Ele estava comigo e levei-o para o transporte. Preferi não ir buscar o Pedro.
- Estou farto de te dizer para não teres o café aberto. Não precisas dessa merda para nada e arriscas muito. Arriscas a tua pele e a nossa.

A conversa tomava um rumo desagradável. Convenhamos que não é muito simpático ouvir outros a falar de nós. Mas a irritação não se resumia a tal pormenor. O risco a que se referia António despertou novamente os meus receios. Se existisse um medómetro, por certo, naquele dia, registaria uma montanha-russa se me fosse aplicado e se apresentasse resultados no mesmo formato dos polígrafos.

A descarga iniciou-se e fazia-se para um frigorífico semelhante ao do armazém de origem da mercadoria. Tudo acontecia na maior pasmaceira, num clima silencioso, avivando ainda mais o espavento ulterior.

Estávamos a transferir a carga há menos de cinco minutos, quando um chiar de pneus junto ao portão frontal lançou o alerta. Sem uma palavra, Carlos correu para a saída das traseiras. Segui-o de perto, completamente em pânico. António e o outro homem ficaram em defesa da encomenda. Ouvi gritos e, quando já arrancávamos num carro estacionado na rectaguarda, escutei o início de uma troca de tiros.

Finalmente, vi o descontrolo a apoderar-se de Carlos. Praguejava enquanto conduzia desenfreadamente por caminhos rurais, rasando muros de xisto e acertando em vários buracos. Não era, todavia, a dificuldade da condução que o apoquentava:

- Trinta quilos de cocaína para o galheiro. Não sei como vou safar a pele… 
- Afinal não era marisco?
- Era marisco com recheio, porra! Tanto trabalho e estes cuidados para transportar marisco? Ainda acreditas em contos de fadas…

Provavelmente, António e o outro homem teriam sido mortos na emboscada. Mas Carlos preocupava-se, sobretudo, com a droga perdida. Isso dava uma clara expressão à frieza e à falta de empatia daquele homem. Arrepiei-me e só queria chegar depressa a casa para tentar esquecer tudo por que passara nas horas anteriores. Mal imaginava o porvir. Uma coisa é perder a inocência, outra, bem diferente, é tomar consciência de que, uma vez transposto determinado patamar, o recuo é impossível.

Carlos deixou-me à porta de casa, despedindo-se com uma advertência, para levar a sério:
- Ficas sossegadinho. E bico calado! Não queiras pagar o patau por esta porcaria toda.
- Mas eu não fiz nada – argui
- Não sejas telhudo! Nunca te esqueças de quem aparece a conduzir a carrinha de transporte nas câmaras de segurança da auto-estrada.

Obviamente, mantive-me em silencio. Viver sozinho ajudou ao sigilo. Quanto à outra parte do aviso – ficar sossegadinho -, mostrou-se tarefa impraticável. Apoquentadíssimo, consumi horas empreendendo no sucedido. É incrível como a modorra de um confinamento pode transformar-se, em menos de um espirro, numa arritmia de episódios capaz de revoltear o quotidiano de um pacato cidadão, aspirante ao ócio e à vida de escritor sedentário e tendencialmente ermitão.

Do mal o menos. Divorciado e praticamente celibatário, não havia mulheres nem filhos a quem dar explicações. Devia respostas apenas à consciência. E já não era pouco. Descobri-o por aqueles dias. Queria convencer-me do carácter benigno da minha personalidade. Tentava persuadir-me de que a preocupação devia-se a ter participado em algo muito grave, contribuindo para o tráfico de droga e escondendo da sociedade o tiroteio e a provável chacina no armazém de descarga da cocaína. Induzia os raciocínios para chegar à conclusão de que sou uma boa pessoa a quem o azar do acaso imputou o papel de figurante num episódio repulsivo.

A consciência, realmente, macerava-me o ânimo. Mas talvez não fosse só essa a causa da angústia. Não seria também e sobretudo o medo? Por força de tanto cismar, o desenho de traços trémulos, como que resultante daqueles jogos infantis de unir pontos numerados, conquistava uma forma absolutamente nítida. Se quisesse ser sincero comigo, tinha de admitir o óbvio: mais do que um problema de consciência de bom cidadão, assombrava-me o medo de ser descoberto, julgado e preso. Descobri ser menos imune do que julgava à falta de princípios. Ante um problema complexo, manifestava-se o instinto de sobrevivência social, uma reacção inata de omitir do conhecimento público as nossas falhas. Um reflexo que, bem treinado, afasta das más acções o epíteto de problema. Só precisam de ser bem camufladas.

Passei dois dias neste deve e haver, metade autoconhecimento e outro tanto autocomiseração. Apesar da moleza, saí diariamente para comprar os jornais mais sensacionalistas, buscando informações sobre os acontecimentos que vivera em primeira mão. Percebi haver um submundo que não aparece nos média, porque nada do que presenciei foi relatado em qualquer periódico ou canal televisivo. Há uma dimensão da vida e da morte que escapa ao cidadão comum. Até então, admitia que só a alta cultura ou a política no sentido mais ideológico e teórico fugiam ao radar do homem médio. Afinal, há toda uma vida para lá das fronteiras alcançáveis por jornais e autoridades. O mundo digital é, efectivamente, uma cópia da realidade. A famigerada dark web mais não é do que a irmã gémea da vida esconsa de muitas pessoas.

Ao terceiro dia após a aventurosa excursão à Galiza, a realidade mais pesada veio ao meu encontro. Não me bateu à porta, mas quase. À saída do prédio, quando me preparava para ir ao quiosque, surgiu-me António. Instintivamente, fiquei contente por perceber que o amigo de Carlos não fora assassinado no tiroteio. Mas depressa percebi serem exagerados os ímpetos de alegria.

- Vamos passear - disse-me com voz ríspida, autoritária.
- Puta que vos pariu mais aos vossos passeios - reagi por instinto.
Não foi a recepção mais cortês, lembrou-me António. Com um sorriso tão cínico que chegava a parecer simpático e com um trejeito ardiloso, que guiou o meu olhar para o revólver preso à cintura, convenceu-me a segui-lo até ao carro.
- Foi o Carlos que te disse onde moro?
- Não foi preciso, bastou uma simples dedução - respondeu, enigmático.
Mesmo sem eu perguntar o significado da charada, António avançou com a descrição dos factos.
- O carro em que vocês fugiram tinha um sistema de gps instalado. Bastou-me consultar o registo de navegação. A primeira paragem foi aqui. Só podia ser a tua morada.
- Então o Carlos não te disse onde vivo. Tentou proteger-me?
- O Carlos só tenta proteger-se a ele próprio. Tentava…
- Tentava, como? Morreu?
- Sim. De morte matada. 
- Foste tu?
- Não. Foi a justiça dos homens.

O carro, conduzido por António, afastava-se do centro da cidade. O medo, que descobrira endémico em mim, atormentava-me. Temia ser executado por saber de mais. Percebi que a dignidade se perde num ápice, basta sermos injectados com a dose certa de medo. Vi-me na posição do mais abominável sabujo, procurando ganhar a confiança daquele algoz.

- Apesar da forma brusca como me abordaste, fiquei muito feliz por ver-te. Julgava-te morto.
- O triste fim ficou guardado para os meninos que lá entraram aos berros e aos tiros. E também para o sócio deles.
Num rebate de consciência, experimentei a defesa de Carlos:
- A quem te referes? Não acredito que o Carlos estivesse de conluio com eles. Fugimos os dois e bem vi o desespero. Fartou-se de lamentar a perda da carga.
- Tretas! Os galegos são completamente de fiar. Eu não fui o bufo. Ou foste tu ou ele. Como tu és verdinho nisto e faltam-te os contactos, foi ele. Ou terás sido tu a entregar-nos a um grupo rival?
- Não, não…
- O Carlos era um mestre da dissimulação, mas eu não esperava ser traído desta forma. Havias de vê-lo antes de levar dois tiros nos cornos. Só faltou rastejar pedindo desculpa.

Este António, seco e duro, era alguém muito distante da pessoa retratada por Carlos, quando os conheci. Que é do ser vencido pela dor de corno, vergado pelo desespero e talvez pela humilhação, namorando o álcool em busca de conforto? O homem que me conduzia, aparentemente para o local onde acontecera o tiroteio, parecia isento de afectos, era quase um humanóide cumprindo uma missão precisa. Às vezes, um forte desgosto emocional tem o condão de colocar uma personalidade benévola a fazer o pino, concluí antes de chegarmos ao destino. Estávamos mesmo no armazém agrícola, onde fora descarregada a droga.

Saímos do carro e entrámos no edifício. Havia manchas de sangue no chão, mas não sobrava qualquer sinal do corpo ou dos corpos que ali terão jazido. António caminhou em direcção a um armário em que eu não reparara na visita anterior. Dali retirou um saco, entregando-mo.
Continha telemóveis e de cartões de telefone.

- Cada aparelho tem um número e cada cartão também. Irás usar o cartão um no telefone um, o dois no dois e assim sucessivamente. Vais ligar imediatamente o telefone um com o respetivo cartão. Quando receberes uma mensagem decoras o conteúdo e desfazes-te do telefone e do cartão. O mais longe possível dos lugares que costumas frequentar. Nessa altura ligas o telefone dois.

Foi preciso uma bateria de questões para ficar a par do plano. Cada mensagem seria composta por duas palavras. Seriam os locais de levantamento e de entrega dos próximos transportes de cocaína. Eu deveria escrever os dois vocábulos no meu texto no jornal do dia seguinte, pela mesma ordem em que apareceriam na mensagem. Não podia escrever os termos mais de uma vez.

- As pessoas que conhecem a chave de decodificação vão perceber. Tu não vais saber mais do que deves, ficando imune a tentações de imitar o teu amigo Carlos. A capacidade de ironizar perante um tipo aterrado, dava a António um visível prazer, a satisfação de quem usa a crueldade com virtuosismo.

O plano só se tornou concretizável, porque, entretanto, fui chamado de volta ao trabalho. Aceitei participar na moscambilha por medo das consequências da recusa e por cobiça: fora-me prometida uma recompensa choruda.
 
Passaram algumas semanas sobre os acontecimentos que vos relatei. Já contribuí para três transportes de droga, enfeitando textos sobre futebol com as palavras recebidas no telefone. Um ponta-de-lança teve direito ao adjectivo extravagante, o domínio de uma equipa sobre outra foi despótico, a táctica escolhida por um treinador mostrou-se ruinosa… 

A consciência não me pesava tanto como se poderia supor. Especialmente porque me pesavam mais os bolsos. A seguir a cada publicação foi colocado na minha caixa de correio um envelope com uma agradável colecção de notas de cinquenta euros.

O conto que planeava redigir, e que me levou a investir no conhecimento da personagem Carlos, ficou para melhor oportunidade. Ando demasiado ocupado. E a folha em branco voltou a manifestar uma incontida aversão pelos meus arroubos de escritor. Quem disse que o confinamento é um período de calmaria, propício a actividades que requerem sossego?

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Conto: Três cadáveres e algumas canções

Três cadáveres e algumas canções O corpo exibia-se, imóvel e ostensivo, com a serenidade de todos os cadáveres resultantes de um suicídio....